De maneira mais ampla podemos dizer que a música sempre fez parte da historia da humanidade. Citações bíblicas e históricas dão testemunho desta relação inseparável do homem com a música desde os primórdios da criação. Curiosamente, nas Escrituras Sagradas a primeira citação que temos sobre a música não é necessariamente sobre a utilização dela no culto. Pelo contrário, a Bíblia destaca Caim e seus descentes como criadores de instrumentos musicais. Para aqueles que não se recordam, Caim é o primeiro assassino da historia da humanidade: matou por inveja o seu próprio irmão.
De forma mais estrita, a utilização da música na vida da igreja, tanto no período do Antigo Testamento quanto do Novo Testamento, tem relação direta com as celebrações do povo de Deus. Porém, mais do que um entretenimento, a música era usada para celebrar a grandeza majestática do nosso Senhor.
No Velho Testamento, os Salmos descrevem com perfeição a utilização que a igreja fazia da música na sua adoração. Eram eles usados como canções de adoração ao Deus de Israel. Davi foi um dos maiores compositores da história, além de ter sido o responsável pela organização estrutural da música no culto. Os levitas usavam diversos instrumentos e um número expressivo de vocalistas para proclamarem em canções o seu vislumbre, o seu temor, a sua reverência e gratidão a Deus.
No Novo Testamento, a música continua servindo ao propósito de glorificar a Deus. Os evangelhos destacam que Jesus cantava a glória do Pai nos seus momentos de intimidade com Ele. Apesar de haver uma única citação direta sobre ele haver cantado, tudo indica que este não foi um fato isolado na sua vida. Paulo também estimulava a igreja a adorar a Deus com salmos e cânticos espirituais. E em vários livros do Novo Testamento temos músicas que a igreja cantava em seus momentos de celebração cúltica.
Nos primeiros séculos da história da igreja Cristã, a música ainda continuava cumprindo com seu propósito Teocêntrico. Nesse período o louvor cantado na igreja tinha a intenção de ser simples, para que toda a congregação pudesse cantar. Os dirigentes de músicas cantavam em uníssono e a música era serva da palavra de Deus. O propósito dos cânticos na igreja não era produzir entretenimento, mas conduzir o povo a uma adoração séria e verdadeira ao Deus vivo. As letras das músicas, por serem bíblicas, produziam no coração daqueles irmãos um fervor apaixonante pela verdade de Deus. Tanto era assim, que muitos mártires, ao serem queimados vivos ou lançados nas arenas para servirem de alimento aos leões, morriam cantando e glorificando a Deus. Há um relato bíblico claríssimo sobre esta realidade: é a historia de Paulo e Silas na cadeia, os quais, ao serem presos injustamente, oravam e cantavam ao Senhor. Com certeza eles não estavam cantando bobagens teológicas. Os primeiros cristãos eram capazes de perder família, bens, prazeres, e mesmo assim ter nos lábios um novo cântico dizendo: “Sou Feliz, com Jesus, sou Feliz com Jesus meu Senhor”.
Com o passar do tempo, principalmente na idade média, a música é tirada de seu propósito primário. A partir do século V as pessoas vão à igreja assistir aos cultos. Os irmãos já não cantam mais, pois, além de as missas serem celebras em latim (uma língua praticamente morta), havia ainda o agravante de os cânticos serem de difícil compreensão, motivo pelo qual a igreja já não conseguia cantá-los. Neste contexto, os cânticos, na sua maioria, eram executados no estilo gregoriano. Gregório Magno criou um padrão musical com melodias extremamente longas e de complexo entendimento.
Ainda na Idade Média, as músicas passam a ser executadas na igreja por corais, pois o leigo não mais consegue cantar estes novos cânticos. Os arranjos são dificílimos para serem executados por pessoas que não tivessem um profundo conhecimento musical. Os cultos se tornam espetáculos e as pessoas telespectadoras: não entendem o que se prega e não compreendem o que se canta. Tudo é muito bonito, mas não cumpre o seu propósito.
No entanto, com a Reforma Protestante a música novamente volta a cumprir o seu papel dentro do processo de adoração cúltica. Martinho Lutero entendia que a música era um veículo importante para difundir a palavra de Deus entre os povos. A música servia à palavra de Deus, as letras eram bíblicas e Teocêntricas. João Calvino contratou músicos profissionais para musicalizar os salmos, montando aquilo que ficou conhecido por Saltério Genebrino. Contratou também professores de música para as crianças, pois entendia que se elas aprendessem a cantar as Escrituras, certamente cantariam para os seus pais, levando a palavra de Deus a estes que não conheciam o evangelho. Os grandes hinos escritos nesse período e no período próximo posterior prezavam tanto pela letra como pela melodia. A música tinha o propósito primário de adoração, mas também era um instrumento de doutrinação na vida da igreja, exatamente porque mantinha o seu aspecto escriturístico e teocêntrico.
Já no XX, com o surgimento das grandes cruzadas evangelísticas e o aparecimento da música “gospel”, a música cristã é escrita com letras e melodias mais simples, perdendo o aspecto doutrinário e ganhando um contorno “evangelístico”, sendo direcionada muito mais às pessoas fora da igreja do que aos Cristãos. Os cânticos são mais repetitivos e as letras ficam mais pobres em seu conteúdo poético e bíblico, chegando ao extremo de, nos dias atuais, os cânticos serem usados como mantras religiosos, buscando na maioria das vezes atingir apenas as emoções dos ouvintes. Assim, destoam completamente do seu propósito primário no culto, que é cantar as verdades de Deus, com a finalidade de exaltar a Sua glória, honra, poder e grandeza, e consequentemente imprimir as Escrituras no coração dos fiéis, inflamando-os com a alegria e o temor diante de Deus.
Que nós sejamos instrumentos de Deus no nosso tempo para resgatar o louvor bíblico, e assim divulgar as Escrituras com boa música, boa teologia e boa poesia. Que o Senhor nos ajude neste propósito.
Pr. Dantas